Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor. Criador da Agulha Revista de Cultura. Estudioso do Surrealismo e da tradição lírica hispano-americana, com alguns livros publicados sobre esses temas. Atualmente é curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Contato: floriano.agulha@gmail.com.
Há um sentido profundo que é preciso recuperar em cada coisa que fazemos. Um modo de reaprender que os nossos gestos são mais do que o desígnio de símbolos. São intimamente segredos que vamos transmitindo, intuição que vamos alinhavando em nossa vida. A palavra mais sagrada que nos alimenta a existência é casa, desde o útero materno até o sarcófago, com seus cantos de nascimento e morte. A casa é esse labirinto em que nos transfiguramos em prolongadas prestidigitações, essa correnteza em que nos misturamos, com um significado quase sempre de elevação a suas cavidades, fossas, grutas, com o ânimo por vezes inconsciente de conceber um motivo para nossos atos e assimilações. Em nenhum outro lugar poderíamos sacrificar ou falsificar deuses, e até mesmo comparar as nossas dúvidas mais irracionais. A casa é o truque biológico do que está dentro e fora de seu núcleo. Somente através desse pleno estado de ilusão é que conseguimos criar e alterar a órbita de nossos vícios. O ninho dos mais estranhos fenômenos, o prado em que aprendemos que os universos paralelos tanto brincam em nosso íntimo como preconizam as formas incompreensíveis do destino. Talvez seja certo dizer que não há alma ou poesia ausente da casa e suas inesgotáveis dimensões.
Quando criamos de algum modo deixamos que as ondas se amplifiquem, que o movimento fora e dentro de nós se produza em distintas frequências, que eletrifiquem toda uma caixa de mistérios. Concentrar-se fixamente naquele ponto em que cada um dos sentidos nos permite identificar seus colares. A sombra ligeira, o músculo cardíaco, a fruta amplificada. São como modos de autenticação do próprio ser. O contraste sedutor do toque, a percepção das ondas em nosso íntimo, a agudeza do gosto. Deixá-los atuar em isolado. Talvez como uma vertente de iniciação ao erro. Ou como aquela primeira vez em que nos sentimos alheios ao nome, a todas as provas e vestígios da existência humana. Desconfio que é assim que se sente Bianca Monteiro Garcia quando está criando seus poemas.
Há pouco conversamos com ela, Elys Regina Zils e eu, para um projeto que estamos preparando para a revista Esteros, no Uruguai. Falamos um pouco sobre a natureza da descoberta do poema. Bianca então nos disse algo muito interessante:
Acho que um poeta surge de diversas maneiras, sem uma regra ou um modus operandi específico. É claro que a leitura é o maior aliado do escritor em geral, mas quando penso leitura, não penso somente em livros, textos literários e críticos ou em ambientes universitários. Penso também em leitura de mundo. Penso em Carolina Maria de Jesus e seus diários. Carolina era poeta e lia o mundo, refletia sobre ele a partir de seu trabalho de catadora de papel. Carolina tinha tempo de imergir em muitas leituras? Repito com convicção: Carolina, assim como muitas outras Carolinas, fez poesia ao dizer, por exemplo, que “a fome também é professora”. Stella do Patrocínio foi uma poeta que viveu durante 30 anos internada na Colônia Juliano Moreira e fazia poesia ao dizer que “era gases puro, ar, espaço vazio, tempo”. E esses são só alguns exemplos do que é poético na obra das duas que liam o mundo muito mais do que os livros. Pode parecer clichê, mas a poesia está em todos os lugares e nos mínimos detalhes cotidianos, basta olhar e olhar de novo.
É particularmente relevante e até certo ponto surpreendente a leitura de Bianca Monteiro Garcia, pelo que ela desintegra um conceito viciado que torna o criador de versos um fruto único dessa imensa árvore chamada Biblioteca. Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Stella do Patrocínio (1941-1992) foram duas atípicas poetas brasileiras, no sentido de que seu ideário poético foi captado de esferas em geral percebidas como alheias ao mundo da criação. A primeira foi uma catadora de papéis, a segunda uma doente mental. Carolina publicou um livro intitulado Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), Stella não teve a sorte de ver em vida seu livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001). Uma residia em uma favela, a outra em um manicômio. E jamais se conheceram, ou conheceram Bianca.
Quando as viagens são sombrias ou quando somos mulheres-pássaros. Quando os acordes saem para pescar novas canções ou descobrimos descender de outras estátuas menores. Quando os verbos esculpem novas cenas e suas cicatrizes. Um dia contradizendo o outro até que o Dilúvio não saiba a que horas entrar em cena. Os mitos, as lendas, os poemas. Um simples relâmpago pode sintetizar toda uma anatomia errante de nossos equívocos: não há potes de ouro / língua também é corpo / e outro dia me lembraram / não há troféu na linha de chegada. Um paso doble de fundamentos que implodem a arena antes que o toureiro seja desmascarado. De todos os hábitos o que mais necessita ser banido é o dogma. Do quadrante dos garfos aos versículos bíblicos, acabamos cegando as evidências para que elas não nos revelem a verdadeira chaga de nossas caricaturas. O poema – tanto o viciamos em intrometer-se no erro dos outros – corre o risco de não poder mais evitar uma terapia gramatical. No entanto, os ventríloquos continuam arquivando suas piadas incompreendidas. As deusas não revelam a ninguém o tempo em que vivem. As andorinhas deixam sempre abertos o portão de seus ninhos quando saem para visitar outros mares. Não é outro o acúmulo vertiginoso de figurações que Bianca Monteiro Garcia se atreve a revelar neste seu livro.
Qual livro? Breve ato de descascar laranjas, um livro repleto de mundos baldios que se concentram em sua escrita e em sua percepção da concha, casa, a mesa sagrada onde nos multiplicamos. É curioso como um livro de viagens se abre à intimidade de nossas roupagens, no internato da alma. Um livro que nos desloca intimamente, mesmo quando toca na pele por fora ou acende luminárias em distintos cenários externos. As laranjas que Bianca descasca são as máscaras dos objetos, a fruta errante de nossa imaginação, ou como ela prefere: um novo jeito de habitar trincheiras.
A baldeação dos mitos abre passo para uma nova jornada. Pandora deve buscar cobertores mais quentes e máscaras antissépticas em outra caixa. As dores empíricas são privadas de eficácia. As ilusões e os sortilégios já não sabem mais onde atuar. De algum modo, enquanto descasca a laranja de sua criação, Bianca Monteiro Garcia nos alerta que a hipocrisia anda inspirando os espasmos mais confusos de todos os tempos. Não herdamos mais nada do pai, não há mais iniciados em quem se possa acreditar, e certamente já entramos naquele ciclo prenunciado por Robert Charroux, em que os nossos sentidos se tornaram atrofiados e substituídos por uma organização protetora criada pelo cérebro.
Talvez seja exatamente isto que ela quer nos dizer ao evocar as cenas mais simplórias, as coisas que estão fora de lugar, as regras esquecidas da casa, a atomização da resistência, os fantasmas da memória, esses pequenos signos do cotidiano, as imagens codificadas do desejo, essa ciência rara das respostas inverídicas que nos atormenta a todos quando preparamos rapidamente o ovo para o café da manhã ou escovamos os dentes antes de dormir. Uma persuasão de limites. Uma revanche do sagrado. Um milagre refazendo seu diâmetro. Esses são os passes de mágica que podemos buscar na poesia de Bianca Monteiro Garcia, como quem ainda acredita que está apenas perdida a receita de um elixir da imortalidade. E está perdida justamente dentro da casa. Encontrando o seu sentido profundo, como quem desvenda o ciclo da água, a redondeza de uma grande obra ou a descarga elétrica da criação da vida, certamente decifraremos o alfabeto por trás de si mesmo. O poema é pó e água desse mistério.
A poeta Bianca Monteiro Garcia (Rio de Janeiro, 1994) é editora da Macabéa Edições e da Taioba Publicações. Possui formação acadêmica Letras e é especialista em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ministrou o curso “Literatura e loucura: Maura Lopes Cançado, Lima Barreto e Stella do Patrocínio”, na Coart/UERJ. Pesquisadora independente de poesia contemporânea escrita por mulheres, tem poemas e entrevistas publicadas em revistas e plataformas digitais. O livro do qual estamos tratando aqui, uma preciosa estreia, entre as melhores de nosso tempo, é breve ato de descascar laranjas (2023), publicado por ela própria em uma coedição com a editora 7letras. Seu desafio começa agora: avançar em uma voltagem que de partida já possui sugestiva altura. O sentido profundo a que nos referimos não se situa especificamente em um lugar, sendo a soma de todos os vetores estéticos, de todas as pulsações anímicas e aquele movimento sincrônico que faz com que todas as coisas habitem a tempestade aguda que abre caminho para tudo o que podemos ser.
Desenho de Ariyoshi Kondo.